quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Direitos humanos: o laço possível entre vínculo e a intervenção


Este texto é fruto de muitas conversas, de muitas leituras e muitas experiências com vários interlocutores e por isso a produção passa pela interdisciplinaridade, mas muito especialmente com as discussões da prática no IAJ com campo de atuação nos direitos humanos, destinando sua intervenção direta à garantia destes, para as pessoas presas e/ou em medida de internação, vulneráveis social e economicamente e que estejam sendo processadas, por meio de metodologia interdisciplinar reunindo profissionais do direito, da psicologia e do serviço social. É deste caminho tramado por várias relações, situações e vínculos, assim como por vários lugares que foram produzidos os pensamentos e as reflexões enunciando esta fala, num diálogo mais direto entre os direitos humanos a partir do paradigma da dignidade humana, princípio constitucional que norteia o Estado Democrático de Direito.
Nós, profissionais, temos uma prática efetivamente protetora de garantia dos direitos humanos que se sustenta no vínculo com o beneficiário?

À proposta deste debate envolvendo o serviço social, a psicologia e a educação social, proponho ainda a aproximação do direito e de todas estas disciplinas com os direitos humanos, atendendo a dimensão ética e política, trazendo um olhar sobre a singularidade na questão da produção da subjetividade da população vulnerável, tendo presente a clássica expressão de Hanna Arendt, que todo e qualquer sujeito de direitos tem direito a ter direitos.

O intuito é dar visibilidade na urgência e na importância da dignidade do beneficiário de serviços prestados por profissionais destas disciplinas, apresentando uma prática tomada pelo viés da política dos direitos humanos, da interdisciplinaridade e dos vínculos.

Falando em direitos humanos, vale lembrar que a proteção dos direitos humanos foi se constituindo internacionalmente, sustentando o novo paradigma da dignidade humana que obriga revisão de conceitos, práticas e normas. É a positivação dos direitos humanos, sustentação para a corrente que adota a concepção positivista.

No Brasil a garantia dos direitos humanos foi consolidada pela Constituição Federal de 1988, representando o novo paradigma pela mudança substancial e formal de sistemas e instituições. Nesta perspectiva a proteção e garantia dos direitos passa a ser um princípio constitucional. Traz o avanço de uma carta de direitos, dando potencialidade ao princípio da dignidade da pessoa humana (Barroso, 2003 e Piovesan, 2004). Tanto que relaciona direitos fundamentais como resultado da positivação constitucional dos direitos humanos e que não se confundem com outros direitos assegurados ou protegidos. Assim como, abriga princípios que passam a dar uma nova dimensão ao constitucionalismo nacional. Resgata valores juridicos suprapositivos, reaproxima a ética e o direito e destaca idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais (Barroso, 2003 e Piovesan, 2004). Esta novidade, já com mais de 20 anos, serve de guia na interpretação da Constituição Federal.
A concepção de direitos humanos que orienta tanto a nossa caminhada quanto às práticas do IAJ “radica na busca de realização de condições para que a dignidade humana seja efetiva na vida de cada pessoa, ao tempo em que é reconhecida como valor universal”(Carbonari, 2008, p.36).

É o reconhecimento e a incorporação dos direitos humanos também na ordem social e política da nação, resultado de um processo histórico e avanços institucionais com resultados e repercussão em conquistas do exercício de cidadania, de reconhecimento de direitos. Bobbio (1992,p.18) explicita este movimento, dizendo que: ”o elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc”.

Este também é o entendimento de Hannah Arendt (1979), quando diz que os direitos humanos são construídos no processo histórico. Esta noção de direitos humanos que implica direitos de cidadania, sujeitos de direitos, exige ampliação com espaços de participação direta destes sujeitos voltados ao encaminhamento, à transformação e à construção de políticas públicas em busca de emancipação.

A lógica desta ampliação de espaços emancipatórios é a intersubjetividade, um contexto de relações, tendo como alicerce a alteridade, sustentando a diversidade e a pluralidade (Carbonari,2008).

Para proporcionar que os direitos humanos se transformem na questão mais importante e central na vida cotidiana, reforçando seu caráter emancipatório com possibilidades de se concretizar através de políticas efetivas, os vínculos são imprescindíveis, tanto como estratégia de intervenção, quanto como ferramenta para ampliar a proteção e a garantia de direitos para o coletivo. E assim, os profissionais podem fazer dos direitos humanos, instrumento de proteção da pessoa, acima de quaisquer interesses ou instituições, usando o vínculo como possibilidade de intervenção.

Seguindo nesta linha de pensamento, como já ficou dito, é preciso destacar que a promoção dos direitos humanos exige a presença do outro e o compromisso com o diferente. Como diz Hannah Arendt (1993,p.188) “a pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença”. Também Boaventura de Sousa Santos (2003,p.458) destaca, dando ênfase a singularidade e a diferença, que “temos o direito a ser iguais quando nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.

Para um bom começo, a singularidade e a diferença necessitam estar conjugadas com a institucionalidade, porque os direitos humanos são constituídos fora das institucionalidades, nascem das práticas sociais. É aí que se faz necessário cuidado no campo de forças que vai atuar sobre o próprio sujeito.

Neste campo atuam três dimensões, o sujeito, o grupo e a instituição ou sociedade. Estas dimensões vão se integrando a partir das relações interpessoais, múltiplas, de forma que “cada indivíduo se relaciona com outro ou outros, criando uma estrutura particular a cada caso e a cada momento, que chamamos vínculo.”(Pichon-Rivière.1998,p.3).

Ao priorizar vínculos, singularidades e diferenças no processo social, é fundamental a ampliação da participação. Este movimento vai contrastar com a aplicação da burocracia. Quanto mais amplia a participação mais amplia os fluxos institucionais. Este movimento precisa equacionar o fluxo para que não seja inibida a participação.
Coloco como termômetro destes fluxos institucionais, o compromisso com a realização efetiva da dignidade de cada sujeito. Lembro que “as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas realmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento” (Foucault,1999,p.8).

Os fluxos institucionais se relacionam com os serviços, que só existem com pessoas e com diretrizes. Nós profissionais, impregnados em efetivar direitos humanos, não devemos deixar de interrogar, num debate interdisciplinar, ao lado dos assistentes sociais, operadores de direito, psicólogos, educadores sociais e todos os outros, em que medida o vínculo possibilita a nossa intervenção intensificando a relação emancipatória, com o correlato sentimento de empoderamento do nosso personagem, o sujeito de direitos.

Do profissional que vai lidar com este ser humano é imprescindível uma mentalidade e uma atitude multi, inter e transdisciplinar, transversalizada pela dignidade humana, construída para o paradigma dos Direitos Humanos – ter novos olhos para outras áreas do conhecimento.

A interdisciplinaridade oferece uma alternativa de integração pessoal, com a eliminação de dicotomias que nos acostumamos a estabelecer, redefinindo o eu e as nossas relações com o outro, para dar início a um novo relacionamento com o diferente, com os outros e a natureza. O projeto interdisciplinar só o é se coletivamente compartilhado. O fio condutor deste coletivo é a interlocução, a partir de uma modalidade de relacionamento dialógico, com a criação de um espaço partilhado pelos interlocutores com um ouvindo os outros e sendo ouvido pelos outros. É um projeto com gestão coletiva, porque resulta de uma parceria entre todos os profissionais de diversas áreas, especialmente da educação social, do direito, da psicologia e do serviço social, disciplinas abertas ao novo paradigma epistemológico e, portanto com fôlego para possibilitar a construção e a convivência humana em sociedade, priorizando a sobrevivência com dignidade, a marca do exercício dos direitos humanos por meio do acesso a serviços e de apoio social.

Uma prática interdisciplinar e o trabalho com direitos humanos exigem vínculos profissionais e trabalho em equipe. Nestes casos, o vínculo é uma questão constante da agenda para ser debatida pela equipe: tanto os vínculos da interdisciplinaridade quanto os vínculos da equipe com beneficiários.

Atuar no acolhimento da população em risco pessoal e social potencializando o campo dos Direitos Humanos, é trabalhar com vínculos, como o investimento que faz a diferença na prática profissional.

Garantir direitos na proteção básica, na proteção especial de alta complexidade e nas questões de média complexidade, exige uma prática interdisciplinar e o vínculo como fio condutor que liga qualquer atuação profissional com o outro e com o mundo, à medida que o profissional vai operar como uma estrutura dinâmica em contínuo movimento, envolvendo profissional e beneficiário, numa interação interna e externa que promove determinada conduta ( Pichon-Rivière, 1998).

Essa prática também está relacionada com a confiança, na medida em que há um compromisso de atender expectativas de um lado e uma demonstração prática de que somos dignos de confiança, de outro lado. Não podemos ignorar que o contexto que envolve o beneficiário em risco pessoal e social, estimula a desconfiança e o isolamento em detrimento da inclusão social e da garantia de direitos.

Serão necessários vínculos agregadores que favoreçam o desenvolvimento do cuidado aos beneficiários, insistindo numa prática dinâmica levando em consideração as relações dos sujeitos no tempo e nos espaços, indo além das institucionalidades disponíveis.

Vale lembrar um exemplo, como de um conflito no trabalho envolvendo institucionalidades diversas, referente à solicitação de estudo social para profissionais do serviço social, educação social e/ou psicologia de outra institucionalidade, trabalhando junto às famílias a partir da construção de vínculo, da confiança estabelecida entre eles, importando em questão de sigilo, inclusive para manutenção deste vínculo e do próprio sucesso do trabalho desenvolvido na família e/ou comunidade. Desse conflito é possível ocorrer quebra de confiança, até com o rompimento deste vínculo, ocasionando um distanciamento entre os envolvidos, com prejuízo pessoal e profissional.

Pelos argumentos da interdisciplinaridade com o foco em direitos humanos e com racionalidade prática é possível pensar que o/a profissional solicitado seja poupado da quebra de confiança e possível rompimento do vínculo, e que todos os profissionais de instituições diversas, com atribuição para o estudo social, se reúnam em torno de um vínculo profissional para agregar/trocar conhecimentos e para manutenção dos canais/vínculos de serviços aos beneficiários funcionando com a necessária confiança e respeito às questões sigilosas.

O beneficiário tem o direito de ter respeitados os vínculos e o sigilo, que é mais que o direito a ter acesso aos serviços. Na base desta prática está a preservação e a promoção da dignidade, compromisso de todos nós.

Não devemos esquecer da temática vínculos e tempo. O vínculo exige tempo para ser constituído e construído. Quando falamos em vínculo estamos tratando de pessoas, tanto pessoas profissionais quanto pessoas beneficiárias. A substituição de pessoas atrapalha, precariza o trabalho que está sendo feito com as famílias e com a comunidade, com base nos vínculos. A desconsideração dos vínculos tem um custo pessoal e financeiro. Pessoal, porque o trabalho sofreu descontinuidade com rompimento do vínculo. Financeiro, porque o profissional vai ser remunerado para repetir o trabalho, para (re)começar. Criar e manter vínculos é custoso financeiramente, psicologicamente e em termos de tempo.

Podemos pensar que todo o trabalho está contido em relatórios, devidamente documentado. Mas não podemos esquecer que vínculo não se faz com papel, mas com relações interpessoais, interdisciplinares, intersetoriais. Precisamos ficar atentos na resposta da questão inicial.

Palavras finais

Refletir sobre o fazer interdisciplinar aliado à cultura dos direitos humanos faz parte da temática do vínculo como possibilidade de intervenção. É uma experiência que a sociedade precisa ver posta em prática. É atual. É um fazer que viabiliza estratégias de trabalho para o enfrentamento dos desafios contemporâneos, operacionalizando nossas práticas a partir de marcos ético-filosóficos dos direitos humanos e dos marcos normativos nacionais e internacionais, especialmente referenciados na dignidade humana dos sujeitos de direitos. É preciso acabar com a idéia de que os direitos humanos se restringem ao Direito. Precisamos pensar que além das normas jurídicas, há também os conceitos, que são estes marcos éticos-filosóficos, responsabilidade de todos nós.

O engajamento na efetivação dos direitos humanos daquele profissional instrumentalizado pela proposta interdisciplinar de saber e fazer, terá o sujeito e a dignidade como prioridade absoluta. Seu foco de trabalho está voltado pela definição de políticas públicas, envolvendo ações, intervenções, rede - articulações de saberes e fazeres – e, com certeza, o vinculo como possibilidade de intervenção, combatendo a discriminação, o desrespeito, a violação de direitos individuais ou coletivos.

A importância desta discussão reside no fato de compreender o sujeito a partir das práticas de políticas públicas, de como este sujeito se sujeita à determinada prática e mantém garantidos seus direitos, sua dignidade, tornando-se, prioritariamente, sujeito desta prática e não objeto dela.

Sonia Biehler da Rosa



1 IAJ – Instituto de Acesso à Justiça, OSCIP fundada em 2002, com atuação em POA/RS.

2 Mobilização de diversas políticas sociais em defesa dos direitos das pessoas beneficiárias dos serviços.

3 Nós, profissionais, temos uma prática efetivamente protetora de garantia dos direitos humanos que se sustenta no vínculo com o beneficiário?


Referências bibliográficas
Arendt, Hannah, As origens do totalitarismo. Rio de janeiro: Documentário. 1979.
Arendt, Hannah, A condição humana; tradução de Roberto Raposo; posfácio de Celso Lafer. – 6a edição – Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1993.
Barroso, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. SP: Saraiva, 2003.
Brasil. Constituição Federal. SP: Saraiva. 21ª edição, 1999.
Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Rio de janeiro: Campus. 1992.
Carbonari, Paulo César. Direitos Humanos: sugestões pedagógicas. Passo Fundo: Instituto Superior de Filosofia Berthier, 2008.
Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas, (tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes...et al. Rio de Janeiro: Nau Editora.1999.
Pichon-Rivière, Enrique. Teoria do vínculo. 6ª. Edição. São Paulo: Martins Fontes,1998.
Piovesan, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição brasileira de 1988. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica vol. 1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, p. 79-100. 2004.
Santos, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolismo multicultural. V. III: Reinventar a Emancipação Social: para novos manifestos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.458.

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