segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Controle Social na Política de Assistência Social: fortalecer as organizações populares




Débora do Nascimento de Paula


Assistente social do CREAS de São Leopoldo e mestranda em Serviço Social pela PUCRS.


Artigo elaborado para a disciplina de Política Nacional de Assistência Social e Sistema Único de Assistência Social do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUCRS, ministrada pela Profa. Dra. Jane Cruz Prates. Porto Alegre, julho de 2010.




Resumo: A política de assistência social passou por diversas transformações desde a década de 80. A partir da Constituição Federal de 1988, a assistência social passa a ser direito do cidadão e dever do Estado. Em 1993, a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS confere maior organicidade à política dotando-a de princípios, diretrizes e localizando seu financiamento. Após onze anos de LOAS, é aprovada a Política Nacional de Assistência Social e o Sistema Único de Assistência Social, que reorganizam o atendimento a população usuária da política e reforçam a importância da efetiva participação da população na gestão da assistência social. Este artigo ressalta a importância do controle social para além dos conselhos, mas também a partir das organizações populares, trazendo a experiência com a população em situação de rua de Porto Alegre.


Palavras-chave: assistência social, controle social, população em situação de rua




Introdução


Nas últimas décadas ampliou-se o debate acerca da democratização da gestão das políticas sociais públicas, principalmente a partir da década de 80 com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ao mesmo tempo, as transformações no mundo do trabalho incidiram sobre as relações sociais de maneira geral e significativamente na relação entre Estado e sociedade.


O campo das políticas sociais é perpassado também pelas tensões entre projetos societários distintos. Assim como expressa uma resposta do Estado às demandas geradas pelas desigualdades sociais, expressa também a pressão da sociedade organizada na luta pela garantia de direitos.


Nesse sentido, o objetivo desse artigo é ressaltar a importância do fortalecimento do controle social na assistência social, através de organizações populares, como os movimentos sociais, que podem ampliar a participação dos usuários das políticas sociais nos conselhos e ampliar as formas de se exercer o controle social. Em Porto Alegre ressaltamos a experiência do Movimento Aquarela da População de Rua como uma importante experiência de articulação entre os trabalhadores e os usuários da política de assistência social.


Assistência Social como direito


A política de assistência social no País passa hoje por diversas transformações, dentre elas a implementação de um sistema único. Mas esse processo de construção da política enquanto direito social vem sendo discutido há algum tempo. Somente após a Constituição Federal de 1988 é que a assistência social assume o caráter de direito do cidadão e dever do Estado.


A efetivação dessas mudanças para além da legislação certamente não seria tão rápida quanto se esperava. O histórico da assistência social no Brasil nos mostra a concepção que está arraigada nesta política, a do assistencialismo, do clientelismo e da benesse.


Após cinco anos da Constituição Federal, em dezembro de 1993, é promulgada a Lei nº 8742, a LOAS. Ela vem dar organicidade a política de assistência social dotando-a de princípios, diretrizes e localizando seu financiamento. Em seus artigos quarto e quinto, dispõe sobre os princípios e diretrizes que devem reger a política de assistência social que são:


Art. 4º A assistência social rege-se pelos seguintes princípios:


I - supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica;


II - universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas;


III - respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;


IV - igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais;


V - divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão.


Art. 5º A organização da assistência social tem como base as seguintes diretrizes:


I - descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e comando único das ações em cada esfera de governo;


II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis;


III - primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera do governo.


Os artigos deixam clara uma nova concepção que compreende a assistência social enquanto política pública, deixando para trás as formas discriminatórias, clientelistas e assistencialistas de atendimento a população. Quando prioriza o atendimento às necessidades sociais em detrimento da rentabilidade econômica, rompe com uma lógica de mercado colocada nas políticas sociais. Ainda traz como princípio a universalização dos direitos sociais, possibilitando que o usuário da política de assistência social possa ter acesso às demais políticas sociais sendo necessária a articulação entre estas para o atendimento integral ao sujeito.


Enquanto diretriz a LOAS tem como base a descentralização da gestão, a prioridade do Estado na condução da assistência social e a democratização da gestão e execução da política através da participação da população, do controle social por parte dos usuários da política organizados em suas diferentes formas de representação.


Após a consolidação da LOAS, seguiram-se por todo País as conferências municipais, estaduais e as conferencias nacionais de assistência social. Elas indicavam a necessidade de organizar a assistência social em um sistema único que uniformizasse a execução da política. Assim, após um longo tempo de deliberações nas conferencias e debates com os diversos setores da sociedade, em 2004 é aprovada a Política Nacional de Assistência Social e em 2005 a Norma Operacional Básica que cria o SUAS. (COUTO e SILVA, 2009)


A PNAS e o SUAS trazem uma nova forma de organização para o atendimento a população usuária da assistência social. Dividido entre proteção social básica (baixa complexidade) e proteção social especial (média e alta complexidade), ele tem como base a matricialidade sociofamiliar, a territorialização e a descentralização político-administrativa. A proteção social básica tem como objetivos:


prevenir situações de risco, por meio do desenvolvimento de potencialidades, aquisições e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social, decorrente
da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e/ou fragilização de vínculos afetivos – relacionais e de
pertencimento social. (BRASIL, 2005)


Já a proteção social especial tem como objetivos:


prover atenções socioassistenciais a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos
físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras. (BRASIL, 2005)


Assim, a política de assistência social é reestruturada no que tange aos seus princípios, diretrizes e operacionalização. Mas principalmente no que diz respeito ao seu caráter de direito social. A constituição dos conselhos e do controle social de maneira geral foi um grande avanço para a democracia na gestão das políticas sociais, principalmente na assistência social, considerando seu histórico de concepções assistencialistas e paternalistas.


Controle Social: fortalecer as organizações populares


Desde a Constituição Federal de 1988, o tema da participação da população usuária vem sendo tratado mais amplamente pelas políticas sociais e dentre elas pela assistência social. A Política Nacional de Assistência Social (2004:51) traz que, o controle social da população sobre as políticas públicas foi garantido pela Constituição, como forma de efetivar a participação da população na gestão das mesmas. Aponta também que, na concepção do SUAS, o controle social se dará principalmente nos conselhos e conferências da política, mas não limitando-se a estes espaços, pois outras formas de organização da população podem reforçar esse processo de participação.


Apesar de atualmente existirem conselhos de políticas e de direitos em praticamente todas as cidades do País, o que sem dúvida é um grande avanço, só a simples existência desses conselhos não é garantia de uma gestão democrática das políticas públicas. Os conselhos como espaços políticos também são perpassados pela constante tensão e disputa de projetos societários distintos, por isso a importância de lutarmos por conselhos democráticos que fortaleçam o protagonismo da população usuária das políticas. E, para além dos conselhos precisamos atentar para outras formas de organização e participação da população, como trazem Behring e Boschetti:



(...) é importante reconhecer e reforçar outros mecanismos de controle, como o ministério público, a imprensa, os conselhos de fiscalização das profissões e outros, mas, sobretudo, priorizar o fortalecimento dos movimentos sociais, tão necessários em período de ofensiva conservadora. (2008:184)


A participação necessita ser compreendida enquanto processo social, que envolve a capacidade de criação inerente ao ser humano, que através dela se constitui enquanto sujeito protagonista da história. Como aponta Souza: "O desenvolvimento social do homem requer participação nas definições e decisões da vida social. É nesse sentido que o resgate desse processo precisa ser trabalhado." (2004:83). É necessário que se invista mais na formação e capacitação de conselheiros para que possamos qualificar ainda mais o controle social que se dá nesses espaços. A própria PNAS nos aponta essa necessidade "a necessidade de um amplo processo de formação, capacitação, investimentos físicos, financeiros, operacionais e políticos, que envolva esses atores da política de assistência social". (2005:52)


No atendimento direto ao usuário esse processo também precisa ser trabalhado. No próprio fluxo de trabalho dos serviços precisam estar previstas ações de socialização de informações, de discussão a respeito da participação, enfim, momentos que possam possibilitar ao usuário uma reflexão coletiva. A relação primeira com o usuário tem de ser pautada por um principio democrático para que articulados, os trabalhadores da assistência social e seus usuários consigam lutar juntos pela efetivação de uma política pública de direito. Segundo Andrade:


(...) a proteção pró-ativa deve promover a participação do usuário desde o momento do diagnóstico, ou seja, do reconhecimento da realidade socioteritorial na qual serão realizadas as ações públicas e que, por sua vez, o usuário é agente ativo das relações que ali se desenvolvem. (2009:98)


Nesse sentido, a política de assistência social deve garantir as condições básicas necessárias ao desenvolvimento humano e social que, aliadas às ações que garantam a participação efetiva do usuário na gestão da política, possibilitem a consolidação de uma nova cultura no campo das políticas sociais. Uma cultura de direitos e de democracia na condução das políticas no País, que deixe para trás definitivamente as posturas tuteladoras e assistencialistas que fazem parte da trajetória histórica da assistência social.


Organização da população em situação de rua de Porto Alegre


Em Porto Alegre, ações contínuas de repressão policial às pessoas em situação de rua têm se intensificado nos últimos anos. Em 2007/2008, a mesma pesquisa realizada com a população de rua já citada, aborda esta questão. No estudo do mundo da população adulta, quando perguntados se já sofreram violência nas ruas, 66% responderam positivamente. Quando questionados sobre quem eram os praticantes da violência, 26,6% dos entrevistados apontaram os Brigadianos em primeiro lugar. (UFRGS/LABORS, 2008) Além disso, são inúmeros os relatos de pessoas em situação de rua que já sofreram ou presenciaram ações truculentas da Brigada Militar pelas praças e ruas da cidade.


Esse conjunto de ações de repressão e a precariedade dos serviços de atendimento a esta população, entre outros fatores, causaram indignação na população em situação de rua, que começa então a tentar se reorganizar para reivindicar seus direitos, lutar e criar estratégias de resistência. Esse processo de reorganização toma corpo nas assembléias de usuários da Casa de Convivência e Atendimento Social de Rua – FASC, com o apoio e incentivo da equipe de profissionais. Processo que demonstra a importância da articulação entre trabalhadores e usuários das políticas sociais para a garantia de serviços que realmente atendam aos interesses da população usuária.


Em 2008, a população em situação de Porto Alegre se reorganiza através do Movimento Aquarela da População de Rua – MAPR. O movimento surgiu após um ano de discussões a respeito das demandas da população e de análise de suas entidades representativas. O MAPR se torna assim um movimento novo, que ainda está num processo inicial, mas que ao longo desses dois anos de existência já realizou importantes conquistas para a população em situação de rua da Capital e de todo estado do Rio Grande do Sul.


No âmbito da cidade, o movimento realizou encontros com atividades culturais que propiciaram além de um momento de reflexão um momento de confraternização e uma oportunidade para a apresentação dos talentos que compõem esta população. Durante esses encontros, pessoas em situação de rua e trabalhadores da assistência social das cidades vizinhas conheceram o movimento e abriu-se uma nova possibilidade de articulação entre os usuários e entre as equipes que trabalham com a população na região metropolitana de Porto Alegre.


Através da articulação com o Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis – MNCR, integrantes do Movimento Aquarela participaram de seminários e reuniões fora do Rio Grande do Sul, o que deu visibilidade ao movimento nacionalmente e possibilitou a articulação e o contato maior com o Movimento Nacional de População de Rua - MNPR. Assim o MAPR constitui agora a coordenação estadual do MNPR. Também compõe o comitê interministerial responsável pela construção da Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída através do Decreto Nº. 1.053, de 23 de dezembro de 2009. O movimento agora discute com os gestores municipais das políticas sociais a implementação desta política.


No estado, o Movimento Aquarela também é integrante do Comitê Estadual de Educação e Direitos Humanos do Ministério Público. Nacionalmente temos um coordenador do Movimento Nacional da População de Rua na gestão do Conselho Nacional de Assistência Social. Todos esses espaços que os movimentos passam a ocupar são de extrema importância para que os direitos da população em situação de rua sejam garantidos e efetivados com a sua plena participação. O que também reforça a importância de trabalharmos formas de organização com a população usuária na busca de uma qualificação da participação, principalmente nos conselhos das políticas sociais, como aponta Raichelis in Mota [et al]:


(...) ampliar os fóruns da sociedade civil, estimulando a participação dos movimentos sociais e das organizações populares, especialmente dos usuários das políticas sociais públicas, ainda fragilmente representados nos Conselhos e demais espaços públicos de deliberação; (2009:86)


Considerações Finais


Vivemos em tempos de individualismo, de relações coletivas cada vez mais fragilizadas, de enaltecimento do ter em detrimento do ser. Por isso, cada vez mais se torna urgente que resgatemos valores de união, de coletividade e de solidariedade. Nesse sentido, fortalecer a luta pela efetivação de direitos sociais universais tem de ser nosso objetivo comum.


Só através da participação efetiva da população é que vamos construir políticas sociais públicas que realmente atendam às necessidades da população e que possibilitem o melhor caminho a emancipação humana. Por isso precisamos fomentar e fortalecer cada vez mais as organizações populares e movimentos sociais na luta por uma sociedade mais justa e igualitária.


REFERÊNCIAS


ANDRADE, I. Modelo de gestão e protagonismo dos usuários na implementação do SUAS. In MENDES, J. M. R.; PRATES, J. C.; AGUINSKY, B. G. O sistema único de assistência social: as contribuições à fundamentação e os desafios à implementação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.


BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política Social: fundamentos e história. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.


BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome. Política Nacional de Assistência Social PNAS, 2005.


COLETÂNEA DE LEIS.
Lei Orgânica da Assistência Social. CRESS 10ª Região, 2005.


RAICHELIS, R. Democratizar a Gestão das Políticas Sociais: um desafio a ser enfrentado pela sociedade civil. In MOTA, A. E. Serviço Social e Saúde: formação e trabalho profissional. 4ª Ed. São Paulo: Cortez, 2009.


SOUZA, M. L. Desenvolvimento de Comunidade e Participação. 3ªed. São Paulo: Cortez, 1991.


UFRGS/FASC. Cadastro de Crianças, Adolescentes e Adultos em Situação de Rua e Estudo do Mundo da População Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre/RS. Relatório final, 2008.

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